sábado, 7 de julho de 2012

Cara e coroa

E ela ali ficava, esbracejando as suas ideias, ginasticando as suas sobrancelhas - como nunca antes pensara ser possível - olhando para mim com os seus olhos castanhos, cheios de vida, com um ligeiro toque de verde na parte inferior, pareciam reflectir o brilho da luz da lua em noite de quarto crescente.
Ela ali ficava, magicando expressões faciais impossíveis de decifrar mas tão naturais como a curiosidade de uma criança de 4 anos perante uma manta que cobre um pai desejoso de continuar a brincadeira.
Pensei em dar-lhe um abraço, em sorrir perante o seu entusiasmo, talvez agarrar a sua mão, em dizer-lhe para parar de roer as unhas... mas dei por mim imóvel e sereno, pois apesar de energética, ela transmitia-me calma, e assim eu admirava os seus dentes desalinhados e o seu nariz meio arrebitado.
Não sabia como dizer-lhe.
Tentei, por várias vezes fazê-lo. Tentei dizer-lhe o quão fascinantes eram as suas histórias, o quanto me derretia o seu sotaque francês meio aportuguesado, o quão "vivo" me sentia por estar ali, frente-a-frente, com os seus caracóis desajeitados e a sua ingenuidade mascarada por um sorriso ou outro. Tentei dizer-lhe que ficaria a eternidade com ela, ou até mais se possível. Tentei dizer-lhe o quão gostaria de parar no tempo para que continuássemos os dois ali, imóveis, cada um apreciando o que de melhor e pior o outro tem para oferecer. Tentei. Mas não consegui. Despedimo-nos enquanto repliquei algo que já esqueci mas que certamente não era o que eu queria transmitir. Observei cada passo da despedida, pensativo, com vontade de correr para tentar contar-te toda a informação que os meus neurónios faziam passear. Mas as minhas pernas não se mexiam - pareciam pastilha elástica colocada debaixo da cadeira há vinte anos atrás. Observei o movimento dos teus caracóis ao vento, o teu - e tão peculiar - mexer de dedos do pé enquanto caminhavas, a pasta que seguravas pela mão. Observei-a atentamente, pois era a única coisa que conseguia fazer.

E aqui estou eu, contando um pouco de mim, de quem eu sou, só para que compreendas o quão aborrecida eu sou e para que decidas partir de vez. O sol aleija-me os olhos e fecho-os tanto que chegas a duvidar se os tenho abertos, certamente que até te questionas de que cor são.
Aqui estou eu, certamente exprimindo caras de horrores, com a ventoinha a afastar-me e a desajeitar-me o cabelo, com o reflexo do sol a bater na mesa e directamente nos meus olhos e com o sabor amargo deste café não-português, por mais açúcar que coloque, e por mais vezes que mexa com a colher em círculos, este sabor parece não querer desaparecer.
Pensei que, por esta hora já não estarias aqui. Estás tão calmo e sereno que tenho a impressão de que as minhas histórias são mais aborrecidas que a história da carochinha contada pela milésima vez. O vibrar do telemóvel obriga-me a mudar o idioma da conversa, agora certamente que pensas que me gabo por saber falar mais que uma língua. Desejo tão fortemente que o telefonema termine que começo a roer as unhas. E ali estou eu, mostrando-te os meus defeitos, mostrando-te quem eu sou e tu ainda mais aborrecido. Sorrio e dou gargalhadas ao telefone, mas reparo que estás tão fixado nos meus dentes da frente, desalinhados até mais não, que resolvo desligar.
Eu sei que estás louco para me dizer que te queres ir embora, ouvir histórias interessantes dos demais, acelerar o tempo tanto quanto possível para que depressa te encontres noutra realidade bem mais à tua medida. Tento dizer-te para ires, pago a conta e explico que tenho trabalho a fazer. Tu replicas que sim, já se faz tarde e também tens as tuas obrigações. Despedimo-nos com dois beijinhos, sinto-me nervosa porque vejo o fim do momento chegar. Lanço um pequeno sorriso e viro-te as costas. Caminho sem olhar para trás quando me apercebo de um pequeno reflexo teu na janela à minha frente. Estás parado, hirto, com o teu olhar na minha direcção. Por segundos, as dúvidas acerca da verdadeira direcção do seu olhar, borbulham como água a ferver numa panela. Olho em frente e vejo um cartaz anunciando a tua banda preferida em concerto no dia seguinte. "Ah, bem me parecia", e continuo o meu caminho.

2 comentários:

  1. :O
    Estou, literalmente, sem palavras! Gostei mesmo muito... nem sei como expressar o meu agrado por este texto :D um belo passeio por perspectivas diferentes, muito original :)
    Espero que tenhas mais tesouros destes escondidos*

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  2. (: aww tanicas! Obrigada ^^
    Hum, talvez.. :p

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